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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

No tempo dos lotações


O Rio de Janeiro vive um surto de involução tecnológica no sistema de transporte por ônibus, que tem contribuído para a piora da mobilidade e, em consequência, da qualidade de vida da cidade. Veículos inadequados, embora em sua maioria novos, perfazendo itinerários que já não correspondem às linhas de desejo da população usuária, operados segundo quadros de horário superados, com gestores alheios à necessidade da qualidade de serviço – a satisfação do passageiro – e tripulação mal treinada, oferecendo um atendimento aquém do minimamente decente. Caos total, enfim.

A maior parte das maravilhas apresentadas nas feiras promovidas pelas entidades patronais – Fetranspor e Rio Ônibus – têm-se restringido aos estandes montados na Marina da Glória, a cada 2 anos, mesma frequência com que é lembrado o surrado discurso dos corredores de tráfego, tão necessários, sistematicamente cobrados do governo e jamais construídos. Fica aí consolidado um ‘efeito Tostines’ desastroso: o poder público não melhora o sistema viário e o empresariado não investe em ônibus mais modernos porque não quer vê-los destruídos precocemente pelas ruas calejadas.

É nesse cenário que, então, ressurgiu recentemente um velho conhecido de quase meio século dos cariocas: o lotação. De aspecto mais moderno, com nome novo (micrão), alguns até com ar condicionado, mas basicamente com a mesma filosofia operacional: veículo pequeno, sem cobrador. Espalharam-se como verdadeiras pragas, na ânsia de vencer a competição com o transporte dito ‘alternativo’, tentando usar a agilidade de seu tamanho reduzido para imiscuir-se melhor no mar de carros que ele mesmo, o micrão, ajuda a engrossar.

A preferência das empresas tem uma razão óbvia: custo operacional menor, já que poupa-se um profissional por carro e ainda paga-se menos ao que sobra nele – o motorista 'júnior', como é classificado o que dirige micrão, supre função dupla e tem salário menor do que aquele que opera o veículo convencional, com cobrador.

Para o sistema, contudo, a troca tem sérios senões, ao que parece ainda pouco perceptíveis à sensibilidade das autoridades de transporte. Para uma mesma demanda de passageiros, são necessários mais veículos, aumentando a ocupação do espaço viário. Além disso, o micrão tem velocidade operacional notadamente mais baixa, já que – em princípio – fica parado enquanto o motorista recebe a passagem e dá troco. E, quando não se detém no ponto, é um fator grave de insegurança no trânsito, com um motorista dirigindo com um olho na via e outro na gaveta do dinheiro, já que nem todos os passageiros dispõem de cartão eletrônico de transporte (RioCard).

A incrível subversão do modelo estrutural do transporte carioca vem se consolidando, sem que uma providência radical, de reorganização do sistema, seja tomada. Furgões de passageiros (as vans, no termo que já se consagrou em português) e ônibus de pequeno porte estão atuando em corredores tipicamente troncais, perfazendo linhas de alta demanda de passageiros e maior quilometragem. Uma função nobre, que deveria caber não a eles, mas a ônibus articulados e biarticulados, de portas largas, motor traseiro ou sob o piso, suspensão pneumática e ar condicionado, operando em corredores segregados do tráfego comum. Com pontos de parada exclusivos e convenientemente espaçados ao longo do itinerário, nos quais o viajante tenha o conforto de pagar fora do veículo por um bilhete integrado e permanecer abrigado de sol e chuva à sua espera, embarcando praticamente em nível com o piso interno do ônibus.

Não obstante, os investimentos prometidos para a melhoria da rede de transportes continuam no plano das ideias. A realização dos Jogos Pan-Americanos, em 2007, seria um forte argumento de pressão para que grandes obras viárias saíssem do papel. Mas não funcionou. O corredor T5, ligando a Barra da Tijuca à Penha, por exemplo, não vingou. Nem as linhas de metrô para a Barra e os aeroportos Tom Jobim e Santos-Dumont. Nem a duplicação da Autoestrada Lagoa – Barra. A esperança, agora, é a Copa do Mundo de 2014, daqui a apenas cinco anos. E, quem sabe, os Jogos Olímpicos de 2016, logo em seguida.

As vans, embora de início clandestinas, surgiram como opção ao transporte de péssima qualidade oferecido pelos ônibus. Tinham motoristas atenciosos, muitos deles profissionais liberais recém-demitidos da iniciativa privada, que investiam suas economias num veículo. Tinham ar condicionado e música ambiente, itinerário ligeiramente flexível, segundo o desejo de destino dos passageiros, e tarifa menor do que a dos frescões. Foi por causa dessa nova modalidade que o sistema de ônibus, em geral, viu-se obrigado a melhorar o padrão de atendimento. Porém o padrão das vans também caiu: a prefeitura admitiu a proliferação indiscriminada de veículos de todo tipo, sem padronização, permitindo ainda a expansão dos ‘cabritinhos’ (Kombis que eram restritas a serviços em favelas) e acabamos na verdadeira selva que impera no dia a dia carioca.

Quando me perguntam como se chama o cliente do sistema de transporte por ônibus do Rio eu respondo: refém. Porque se vê submisso, à mercê da vontade dos operadores; por ser subjugado no que deveria ser o seu direito ao conforto e à confiabilidade; por não ter, na prática, a quem recorrer.

O caos está instalado, a cidade perde enormemente com isso, os discursos ecoam aqui e ali, projetos se dizem estar germinando em um e outro gabinetes e... E nada. O horizonte não traz soluções, nem sequer um alento. Continuamos esperando: uma atitude ou um milagre.

Novas iniciativas são urgentes para tirar a cidade do marasmo do atual sistema de ônibus que chega a operar a velocidades médias menores do que 20 km/h até fora dos horários de ponta. Corredores de tráfego que atendam aos deslocamentos que verdadeiramente acontecem, nos quais veículos tão confortáveis quanto ágeis sejam capazes de tornar o ir e vir simples, a ponto de uma viagem mais longa não se tornar mais cara e não servir de pretexto para inibir a contratação de um profissional que more afastado de seu trabalho. Uma reordenação tão valiosa que contribua para repaginar o espaço urbano como um todo, permitindo a desfavelização do Rio de Janeiro por intermédio de reassentamentos em novos bairros mais afastados da região central, sem que isto represente uma segregação, mas, ao contrário, faça com que a iniciativa seja em verdade um investimento na qualidade de vida de todos, indiscriminadamente.



Boas Tardes!

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ConCidadão
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