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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Jornalismo mentira, humorismo verdade

O mundo gira, 'A Lusitana' roda. Esse famoso slogan, da primeira empresa do Brasil do ramo de mudanças, nascido com ela há cem anos, em 1921, foi cristalizado como uma citação para mostrar as voltas que o mundo dá e nos trazem, de novo, a situações conhecidas. Foi o pensamento que me veio à mente, quando li uma passagem do livro mais recente que comprei, que me provocou uma análise do modus operandi recente da grande imprensa brasileira. Duas situações específicas me ocorreram: a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República e a onda de devastação promovida pela peste chinesa. E eu acabei traçando um paralelo desses dois temas com a sacada genial de sete malucos que convulsionaram o humor, quarenta anos atrás.

Nas minhas andanças por feiras literárias shoppings adentro, encontrei, esses dias, um solitário exemplar de 'Bussunda, a vida do Casseta', do jornalista e escritor Guilherme Sobral Pinto Menescal Fiuza, um dos comentaristas de 'Os Pingos nos Is' da Rádio e da futura TV Jovem Pan, que chega em poucas semanas à grade dos canais pagos. O livro, de 2010, além da biografia de Claudio Besserman Vianna, narra também a trajetória do grupo de humoristas que comandou, entre outras empreitadas, o programa 'Casseta & Planeta, Urgente', na TV Globo.

A grande tirada dos 'sete meninos de Liverpool', que me inspirou o olhar sobre esses dois assuntos que muito se imiscuem mutuamente, e que remonta aos tempos pioneiros da Casseta Popular e do Planeta Diário, foi a do 'jornalismo mentira, humorismo verdade'. A esculhambação inteligente da notícia, que tanto se serviu da transgressão dos costumes, do questionamento de dogmas e da quebra de paradigmas frágeis, foi um potente provocador do senso crítico das pessoas, na época. E seria extremamente bem-vinda hoje, em tempos de paralisia cerebral crônica, provocada pela cegueira imposta pelo medo da morte e pelo 'ideologismo' político-partidário.

As 'notícias' e as 'pesquisas' dos caras, às vezes, eram falsas, pregavam peças em praticamente todos que deveriam atingir, mas, sobretudo, aguçavam a perspicácia das pessoas, ensinando tanto a lidar com a gozação de forma agradável e inteligente (o 'entrar na pilha'), quanto a saber discernir o que é engodo e o que é verdade. Assuntos sérios eram levados sagazmente aos 'populares', nas ruas, na maciota, abordados com irreverência e suscitando o povão ao senso crítico, fazendo pensar. Nas abordagens que muitas vezes rolavam nas vias movimentadas da Taquara (Jacarepaguá, perto do Projac) e em Vila Isabel (reduto tradicional da Zona Norte carioca), as pessoas à volta do aparentemente incauto ungido a alvo não riam 'do' alvo: riam 'com' ele: o alvo se fazia voluntariamente parte da piada, engrandecendo a cena ao divertir-se consigo mesmo.

Mas, ora, quem diria, não é que esse 'jornalismo mentira', que era mentira mas tratava de fatos verdadeiros, viria a afetar, décadas depois, o padrão vigente do noticiário, outrora sério, da grande mídia? Isso mesmo: o jornalismo oficial da atualidade é visceralmente mentira, uma vez que deturpa e escamoteia a verdade. Numa linha que até poderia sugerir aquilo que os garotos faziam, no passado. Mas com uma enorme diferença: quem pratica o verdadeiro jornalismo mentira hoje não são humoristas, são jornalistas. O que não tem a menor graça. Profissionais que deveriam ter como norte o zelo pela verdade parecem ter rompido esse relacionamento de modo intempestivo. Sem aviso prévio, mas, por certo, com uma boa indenização.

Guilherme Fiuza menciona a ida de Claudio Manoel à festa de Ano Novo do escritório da Globo em Londres, na virada de 1991 para 1992. Na ocasião, os jornalistas sediados na capital inglesa estavam ressentidos com as investidas dos cassetas, cujo trabalho pressupunha usar imagens de fatos reais e sobrepor a elas narrativas totalmente dissociadas dos acontecimentos. Claudio foi alertado para a irresponsabilidade de induzir o público a uma relação confusa com a realidade, inclusive com o argumento de que o jornalismo era um sacerdócio, cuja base é a verdade, traduzida numa fé que estava sendo desmoralizada pelos humoristas.

Na lata, o casseta respondeu que, por ele, estava tudo bem; que ele era ateu e, portanto, não tinha compromisso com a fé. Ao explicar que a sua brincadeira era exatamente essa, de chutar, dar tapa na cara e tirar as coisas do lugar, avisava, em contraponto, que o 'jornalismo mentira' também tinha algo a dizer sobre a realidade e suas vacas sagradas. Pois esse 'jornalismo mentira' dos cassetas prova-se, quatro décadas depois e já ausente da grande mídia, mais verdadeiro do que o falso jornalismo verdade a que assistimos agora, feito por jornalistas de verdade, que se revelam de mentira. E com um agravante: sem o discernimento de uma parcela razoável de espectadores, leitores e internautas, influenciados por formadores de opinião que se acham inteligentes, não necessariamente o sendo.

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e a peste chinesa em 2020 fizeram nascer na mídia uma poderosa casta de donos da verdade que, além de decidirem o que está e o que não está apto a obter essa classificação, têm a prerrogativa de cercear - leia-se censurar - a opinião e o discurso de todos que divirjam de seu ponto de vista tornado oficial. O contraditório está proibido e as plataformas digitais de divulgação estão a serviço da causa, não se restringindo mais à sua função, de veiculação - como deveria ser. Arvoram-se em censores de conteúdo, ao arrepio da lei, travestidos de protetores do que denominam 'padrões de comunidade', algo que nem Aurélio Buarque de Hollanda nem Antônio Houaiss teriam competência para definir, apesar de sua flagrante superioridade intelectual em relação aos latifundiários das Big Techs e seus nerds desenvolvedores de algoritmos.

Neste momento, escrevo sob a estupefação de saber da demissão de Alexandre Garcia da CNN Brasil, por ter manifestado sua opinião no programa... 'Liberdade de Opinião'! Se eu sou o diretor de jornalismo da emissora, ou pedia o boné junto, ou mudava o nome do programa, ou, melhor ainda, o tirava do ar! O nome e a própria atração perderam o sentido. Talvez o desligamento de Garcia traduza bem o que vem acontecendo na grande imprensa, ou 'extrema imprensa', como eu prefiro, exatamente pela perfeita adequação do adjetivo.

Aos olhos dessa militância jornalística, no caso de Jair Bolsonaro, o problema são os avanços conseguidos no resgate do Brasil do atraso e da corrupção, a despeito de os adversários, em grande número, agirem no sentido de sabotar tudo o que for possível. E, para ir contra o 'inimigo comum', vale toda sorte de ataque ao país, o país de todos nós, do qual eles mesmos são filhos! Neste grupo está toda a esquerda; a 'terceira via', que também é inclinada à esquerda mas tem vergonha de assumir isso; a corte máxima do judiciário, de um ativismo político tão feroz quanto ilegal; e um séquito de imbecis que ouvem o galo cantar, não sabem onde, mas repetem os mantras que ouvem de alguém que lhes ordena que cantem, sem constrangimento.

No caso da maior fraude de saúde pública da história da humanidade, a implicância dos militantes é com a defesa do ataque frontal, imediato e óbvio à doença, com as devidas prescrições médicas neste sentido, e com a contestação pertinente da eficácia do modo como o problema vem sendo tratado, na base da suposta prevenção. Para essa militância obediente aos ditames de uma organização mundial que deveria ser da Saúde, são dogmas incontestáveis que não haja essa possibilidade de afronta à praga, que não haja medicamento que possa ajudar neste sentido e que a solução seja exatamente a que vem sendo difundida no mundo, apesar de sua flagrante ineficácia, comprovada à exaustão pelo apreciável número de transmissões feitas por seres supostamente protegidos e, até, pelo número de protegidos que sucumbiram à coisa.

A mensagem cifrada não impede que aqueles que queiram compreender o que se escreve o façam.

Vivemos, enfim, um processo de decadência deplorável do jornalismo brasileiro. Os jornalistas se corromperam e as redações se prostituíram, para servirem a uma causa maior, de uma ordem maior; nova; mundial. Terá sido por afinidade de ambições? Estarão essas ambições atreladas a uma ideologia? Ou a ideologia será mesmo a do clássico vil metal, cujo poder de convencimento é sempre mais forte?

Fato é que um 'novo jornalismo mentira' tomou assento. Diferente daquele dos cassetas. Desonesto, sem graça. Inautêntico. Desonroso. E, contra ele, só mesmo a resistência dos independentes, fortes, e também candidatos a cancelados, censurados, banidos... Ossos do ofício. Mas eles são a sobrevida do que eu chamo de espírito jornalístico, que os bons professores ensinam na faculdade e os verdadeiros editores teimam em manter vivo. Porque é a expressão da verdade; e basta isso ao Jornalismo.

O sacerdócio invocado por aquela jornalista ferida do staff londrino global vem padecendo de sacrilégios da pior espécie, cometidos exatamente por aqueles que dizem professar essa fé. E, com isso, a legião de fiéis seguidores tem debandado, reavaliando sua crença nos oráculos que, até bem pouco tempo, comungavam de sua admiração e os tinham como referência.

Ascensão e queda, no desígnio natural dos impérios. A casa caiu.

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Confira o vídeo deste comentário em https://www.youtube.com/watch?v=hcCIsTaiNLk

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